21h30 · Grande Auditório · 15€ (1)
Martial Solal
No ano em que faz 87 de idade, Martial Solal decidiu retirar-se dos palcos. O concerto de hoje será um dos seus últimos. Os motivos são óbvios, sendo certo que aquele que é um dos derradeiros grandes pianistas históricos, e de maior longevidade, ainda ativos no jazz vem falando, em várias entrevistas, sobre a degradação do desempenho musical que a idade, inevitavelmente, traz consigo. A questão preocupa-o e não se coíbe mesmo de criticar em outros músicos idosos a insistência na continuação das carreiras, apesar da clara diminuição das suas capacidades.
Foi o que notou em Earl Hines no final da vida deste («já não sabia tocar, e eu chorei»). E em Ahmad Jamal, não compreendendo o músico francês nascido na Argélia que o maior sucesso de Jamal, nos últimos anos, tenha acontecido precisamente depois de ter perdido uma boa parte do seu talento. «Pois, perder a técnica é muito mau. Quando se perde a técnica continua-se a tocar o que está na cabeça, mas desaparecem duas notas em cada três», refere.
De qualquer modo, Solal considera que não ter técnica não é um mal por si mesmo. E dá o exemplo de Thelonious Monk: «Ele tinha o som que tinha porque lhe faltava técnica. Não foi isso que me influenciou, mas a sua personalidade, a sua passion d'être.» É verdade, também, que Monk morreu demasiado cedo, sem dar sinais de decadência. A sua esquizofrenia foi piorando, é certo, mas serviu, curiosamente, para melhorar as características da música que lhe ia na alma.
«O problema dos velhos é tornarem-se preguiçosos. Não praticam o suficiente e usam a idade como desculpa», costuma Solal dizer. No seu caso, felizmente, os dotes pianísticos mantiveram-se incólumes durante mais tempo do que seria previsível, mas se entende que é altura de dar por finda a sua vida musical é porque já lhe é difícil fazer com um teclado aquilo que dele nos habituámos a ouvir. Ele próprio pratica menos em casa, não ultrapassando os 45 minutos diários, o que, sabendo-se da sua proverbial disciplina – dedicava, regra geral, quatro horas por dia ao piano, em determinadas alturas indo até às seis –, é bastante revelador.
No passado, para que as suas mãos tivessem um treino mecânico, chegava a fazer escalas e oitavas repetidamente enquanto lia um romance. «E porque não? Os meus dedos não estavam a pensar!», comenta. Hoje, já não pratica para ir mais longe no seu virtuosismo técnico (e na sua imaginação criativa, que considera resultar do primeiro fator), mas para «não perder» o que já tem. Pouco exercita a improvisação, apenas o necessário para que a mão direita se liberte da esquerda, e não revê os temas que apresenta em concerto, sejam standards ou partituras suas, com o propósito de manter tudo «espontâneo» nas alturas em que está diante de um público.
«No dia em que não conseguir mover os dedos normalmente, páro», prometeu depois de fazer 80 anos. Chegou, pois, a altura de cumprir o planeado, antes mesmo que tal se torne evidente. E antes que ele próprio contradiga uma das suas máximas, a de que «um verdadeiro improvisador deve renovar-se continuamente». Aliás, comentara ele que, quando não se está em forma, primeiro repara o músico, depois a mulher do músico, mais tarde os mais acérrimos seguidores e finalmente todos os demais. Pior ainda quando os ouvidos já não funcionam como antigamente, e Martial Solal tem dificuldade em perceber dois sons em conjunto – «é por isso que termino os concertos com apenas uma nota e não com acordes».
Solal é a personificação de toda a história do jazz na Europa, e tanto a história do jazz dito «europeu», que afirma não existir, como o da passagem de músicos americanos por Paris, a cidade pela qual trocou a sua Argel natal. Fez-se notado ao tocar, ainda jovem, com Django Reinhardt na derradeira aparição pública deste, mas considera que o seu desempenho foi «medíocre». Com Kenny Clarke, figura de topo da revolução bebop, trabalhou vezes sem conta durante o período em que o baterista viveu em França.
Teve oportunidade de partilhar o palco com Dizzy Gillespie em algumas jam sessions. Num clube de jazz, conheceu pessoalmente um dos seus ídolos, o pianista Bud Powell, mas recorda que a única frase completa que este lhe dirigiu foi «ofereces-me uma cerveja?».
Duke Ellington endereçou-lhe os mais rasgados elogios e considerou-o um soul brother. Miles Davis dedicou-lhe uma composição, Solal, mas cedeu à «ciumeira de outros pianistas» (palavras do homenageado) e mudou o título para Solar. Tocou com Sidney Bechet, Stéphane Grapelli, Lee Konitz, Johnny Griffins, Chet Baker, Don Byas e Carmen McRae. Mais recentemente, destacaram-se na sua companhia Daniel Humair, Michel Portal, Paul Motian, Gary Peacock e Peter Erskine.
Num meio em que se registaram muitas mortes prematuras devido ao abuso de psicotrópicos, é um sobrevivente. «Nunca me interessei pelas drogas. Toda a gente consumia à minha volta, mas o máximo que fiz foi fumar haxixe duas ou três vezes, e apenas porque não quis ser o desmancha-prazeres no convívio com os amigos», recorda. O seu entendimento do jazz era, e sempre foi, outro.
O início da sua atividade profissional deu-se com a introdução do bebop em França, mas se Martial Solal emparceirou com muitos músicos desse subgénero do jazz e ainda por estes dias interpreta (melhor dizendo: reconstrói, pois pensa que «a tarefa do arranjador é composicional») peças dos seus maiores compositores, começando pelo songbook de Monk, quis ir simultaneamente mais atrás e mais adiante. Daí que lhe tivesse interessado a parceria com Bechet, um dos mais distintos praticantes do seminal estilo de New Orleans: «Havia uma guerra entre modernistas e tradicionalistas, mas eu achava que o jazz podia ser uma grande família.»
A sua abordagem do jazz seguiu outra via que não as da "modernidade" e da "tradição": afirmou-se como um dos primeiros, e mais convincentes, pós-modernistas do idioma. Foi beber inspiração a Art Tatum, Errol Garner, Earl Hines e até aos pianistas de stride, e designadamente Teddy Wilson e Willie "The Lion" Smith, bem como a alguma música erudita do Séc. XX, em especial Stravinsky, os impressionistas e até Schoenberg, para desenvolver uma visão pessoal que difere, por vezes radicalmente, da evolução do próprio jazz. Ainda que, em termos de atitude e inovação, pareça por vezes estar próximo das áreas mais vanguardistas, seja a solo, como na presente circunstância, em duo, com um combo (por exemplo, o seu então mal aceite trio com dois contrabaixos), uma big band ou toda uma orquestra, ele que já escreveu para grandes formações sinfónicas.
«Não podemos simplesmente ouvir e copiar. Eu tive os meus mestres, e quis conhecê-los a todos para, depois, os esquecer, a fim de poder ser eu mesmo. Procurei tocar jazz a partir do original, o jazz norte-americano, mas com conceção minha. Não gosto quando a arte se esquece do que aconteceu antes. Não fui contra o free jazz quando este surgiu, e compreendi até que era necessário, mas achei melhor utilizar o que já existia. O passado é necessário para o futuro», sustenta.
Este posicionamento explica o que o nosso ilustre visitante faz com os standards, transfigurando-os até ao irreconhecimento, sem que antes ou depois reproduza com clareza alguma passagem, porque faz questão que a assistência identifique a peça em causa. Em algumas ocasiões, chega a incorporar vários temas do cancioneiro jazz na mesma incursão musical, num assumido jogo de gato e rato que faz lembrar os desenhos animados de Tex Avery, que tanto admira, ou os filmes de Buster Keaton, com quem a sua personalidade é comparada.
Esta alusão às lógicas cinematográficas de montagem e narrativa não surge aqui por acaso. O nome de Martial Solal está indelevelmente associado à sétima arte. É de sua autoria a banda sonora de À Bout de Souffle, do realizador Jean-Luc Godard, bem como a música de longas-metragens de Orson Welles e Jean Cocteau. Tantos anos após a década de 1960, ainda lhe perguntam sobre a película que inaugurou a Nouvelle Vague, e o que responde nunca se alterou: «Não fosse o facto de esse filme ter mudado o rumo do cinema e a minha música não teria tido qualquer repercussão. Era tão-somente uma paródia ao jazz de Hollywood, isso quando o cinema ainda gostava de jazz, porque depois deixei de ter encomendas.»
Sem nunca ter pretendido forjar um estilo imagético, o certo é que «o único pianista do mundo que não foi influenciado por Bill Evans», segundo a crítica, parece mimetizar a arte das imagens em movimento, em particular aquela em que o movimento, precisamente, surge mais acelerado. Num concerto em trio, há um par de anos, com os jovens irmãos François e Louis Moutin, Solal disse ao microfone para um público visivelmente surpreendido que ambos haveriam de se cansar antes dele.
A música de Solal é um permanente jorro de ideias, com súbitas transposições, imprevisíveis mudanças de direção, misturas de diferentes tempos, contrastes abismais de motivos e uma fragmentação discursiva que nos remetem inevitavelmente para os irrequietos Bugs Bunny e Daffy Duck. Sim, Martial Solal já percorria este caminho muito antes de John Zorn o fazer, juntando várias gramáticas do jazz e da música contemporânea numa fórmula que cria o novo com o velho, respeitando este integralmente, mas nunca se sujeitando a convenções ou estereótipos.
É justo que esta despedida se faça com um solo absoluto. O genial e único Martial Solal conversará a sós com os seus ouvintes portugueses, apenas com a mediação de um piano, essa orquestra virtual que lhe deve não poucos avanços. Neste recital tudo o que ele foi em nada menos do que seis décadas de música estará presente, algo que é incomum, fabuloso, enorme. Vai-se embora só com uma fantasia por cumprir: «Fazer chorar a sala inteira, e depois fazê-la rir-se também até às lágrimas, como os cómicos Chaplin e Bourvil, porque só os muito grandes conseguem transmitir toda a gama de sentimentos.»
Mas bem que esse desejo pode tornar-se realidade, pois ver este homem sair de cena, quando soar a tal última nota solitária, será com certeza motivo para emoção. Além de que o seu humor cáustico, mas desarmante, não deixará de vir ao de cima nesse momento crítico para nos encher ainda mais os olhos de água…
(crítico de música, ensaísta, editor da revista "online" jazz.pt)
Sobre ele escreveu The Guardian: "desde os seus inícios, a obra de um dos músicos de jazz franceses mais célebres de todos os tempos, raramente se afastou do mais febril virtuosismo na improvisação e da mais alta distinção na composição. Solal nunca se tornou prisioneiro da ortodoxia formal do jazz e o seu fraseado nunca cessa de nos surpreender (…) Um espírito verdadeiramente livre que, depois de um caminho de mais de meio século, continua a explorar, ainda e sempre."
Martial Solal tem hoje 86 anos. E resolveu retirar-se dos palcos. A temporada de 2013/2014 será a sua última temporada.
A Culturgest não podia deixar de fazer parte dessa digressão. E em solo, a mais arriscada forma de apresentação, mas onde Solal brilha como muito poucos. Um concerto histórico.
Grande Auditório
21h30 · Duração: 1h30
15€ · Até aos 30 anos: 5€
M3
Umbria Jazz Winter (2008)
Arenes du Jazz (2010)
Informações e reservas
21 790 51 55
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Bilhetes à venda
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